A importância do currículo escolar pdf

265Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 45. p. 265-290. jun. 2007

*

Texto derivado das pesquisas “Multiculturalismo e o campo do currículo no Brasil” e

“Currículo, identidade e diferença: embates na escola e na formação docente”, financiadas

pelo CNPq.

**

Doutor em Educação pela Universidade de Londres. Professor Titular da UCP e Professor

Visitante da UERJ. Rio de Janeiro (Brasil). .

A importância do conhecimento

escolar em propostas

curriculares alternativas*

The importance of school knowledge

for alternative curricular proposals

Antonio Flavio Barbosa MoreiraAntonio Flavio Barbosa Moreira

Antonio Flavio Barbosa MoreiraAntonio Flavio Barbosa Moreira

Antonio Flavio Barbosa Moreira

**

**

*

**

**

*

RR

RR

R

ESUMOESUMO

ESUMOESUMO

ESUMO

O artigo focaliza um processo de construção curricular em uma escola da rede

municipal de Belo Horizonte, no qual vigora a proposta oficial da ESCOLA PLURAL. Destaca

as dificuldades vividas pelo corpo docente da escola e desenvolve o argumento de que

propostas curriculares inovadoras podem criar um espaço discursivo no qual se segregam

as crianças das camadas populares, reduzindo suas possibilidades de autonomia na

sociedade. Com base nas concepções de política de Stephen Ball e Jenny Ozga, analisam-

se os textos políticos da Escola Plural e de uma escola da rede municipal. Verificou-se a

complexa relação entre documentos oficiais e experiências locais, bem como a

necessidade de se afirmar a importância do conhecimento escolar no currículo. Argumenta-

se que a supervalorização do aluno e de suas experiências culturais, em associação com

a secundarização do conhecimento escolar, pode criar um espaço em que a criança seja

confinada e jamais vista como normal.

Palavras-Chave: Palavras-Chave:

Palavras-Chave: Palavras-Chave:

Palavras-Chave: Proposta Curricular; Conhecimento Escolar; Política Educacional

AA

AA

A

BSTRACTBSTRACT

BSTRACTBSTRACT

BSTRACT

The paper focuses on a process of curriculum construction which was developed

in a school from the Belo Horizonte educational system. The school is organized according

to the official curricular proposal entitled PLURAL SCHOOL. It emphasizes the difficulties

which were faced by the academic staff of the school and argues that innovative curricular

proposals may create a space in which children from working class are segregated and

have their possibilities of autonomy in society reduced. Drawing on the conceptions of

politics by Stephen Ball and Jenny Ozga, the political texts, written on the level of the

Plural School proposal and on the level of the school, are analyzed. The complex relations

266 Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 45. p. 265-290. jun. 2007

among official documents and local experiences are emphasized. The importance of

school knowledge is stressed. It is argued that the overvaluation of the students and their

cultural experiences and the undervaluation of school knowledge can create a space in

which children are confined and never considered as normal.

Keywords:Keywords:

Keywords:Keywords:

Keywords: Curricular Proposal; School Knowledge; Educational Politics

II

II

I

NTRODUÇÃONTRODUÇÃO

NTRODUÇÃONTRODUÇÃO

NTRODUÇÃO

Em investigação finalizada há poucos anos,

1

focalizei propostas

curriculares dos municípios do Rio de Janeiro e de Belo Horizonte,

analisando também entrevistas com professores responsáveis pela

formulação das mesmas. As propostas foram escolhidas por sua ênfase na

cultura, por virem sobrevivendo há três gestões nas prefeituras (fato raro

no país), bem como pelo caráter inovador que as distingue.

Nos discursos das propostas evidencia-se claramente a preocupação

com a pluralidade cultural de nossa sociedade, com a necessidade de uma

educação multiculturalmente orientada, com a urgência de se construir

uma escola pública fundamental democrática e inclusiva. Em consonância

com os propósitos enunciados, recomendam-se mudanças nos conteúdos,

nos procedimentos pedagógicos, nas modalidades de avaliação, na gestão,

no espaço e no tempo escolar.

Em recente texto sobre as duas propostas municipais (Moreira;

Carvalho; Câmara, 2003), sugeriu-se que os sistemas de raciocínio

pedagógico que norteiam seus discursos podem, em contraposição aos

objetivos previstos, produzir uma dualidade que contribua para “confinar”

e desqualificar crianças dos setores populares para a ação e a participação

na sociedade, fazendo desses sistemas instrumentos de regulação da

diversidade cultural. Foram levantadas hipóteses referentes a essa

perspectiva, tendo em vista a forma como a avaliação e a organização do

tempo escolar por ciclos são tratadas nos documentos.

Neste artigo, retomo o argumento de que propostas e estratégias

curriculares inovadoras podem, paradoxalmente, criar um espaço

discursivo no qual se “segregam” as crianças das camadas populares,

reduzindo suas possibilidades de autonomia na sociedade, frente às

1

Trata-se da pesquisa “Multiculturalismo e o campo do currículo no Brasil”, finalizada em 2002.

267Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 45. p. 265-290. jun. 2007

crianças dos grupos privilegiados (Popkewitz, 1998). Procuro ilustrá-lo,

então, recorrendo ao modo como o conhecimento escolar é abordado,

tanto em textos da Proposta Curricular Escola Plural, ainda em vigor na

rede municipal de Belo Horizonte, quanto em textos (escritos e orais) de

uma escola da rede, à qual atribuo o nome fictício de Escola Vila Rica

(EVR). Essa instituição escolar, reconhecidamente comprometida com a

Proposta, procura organizar seu currículo conforme os princípios nela

expressos. Analiso documentos formulados na escola e aproveito as

contribuições decorrentes do fato de ter acompanhado, durante cerca de

um ano, o trabalho de construção curricular nela desenvolvido.

Estruturo o artigo da seguinte forma: inicio com pontos de partida

teóricos que me nortearam na abordagem dos textos políticos. A seguir,

destaco, brevemente, aspectos marcantes da Proposta da Escola Plural.

Volto-me, então, para a EVR. Após descrevê-la sucintamente, examino

documentos elaborados durante o processo de construção curricular

promovido por seus profissionais, recorrendo, também, para ilustrar meus

pontos de vista, a depoimentos desses profissionais. Sem pretender

estabelecer generalizações com base na experiência singular da EVR,

finalizo o texto com considerações sobre a leitura de textos políticos e

com reflexões sobre a necessidade de se redimensionarem o peso e o

tratamento dados ao conhecimento escolar no currículo.

SS

SS

S

OBREOBRE

OBREOBRE

OBRE

POLÍTICAPOLÍTICA

POLÍTICAPOLÍTICA

POLÍTICA

EE

EE

E

TEXTOSTEXTOS

TEXTOSTEXTOS

TEXTOS

POLÍTICOSPOLÍTICOS

POLÍTICOSPOLÍTICOS

POLÍTICOS

Adoto a concepção de política de Stephen Ball (1997). A seu ver,

qualquer teoria de política educacional precisa considerar seriamente a

perspectiva de controle do Estado, sem a ela se limitar. Se as políticas são

conjuntos de tecnologias e práticas que se desenrolam, em meio a lutas,

em cenários locais, não faz sentido se ficar restrito às deliberações oficiais.

Política é tanto texto como ação, tanto palavras como feitos, é tanto o

que é intencionado como o que é realizado. As políticas serão sempre

incompletas se não forem relacionadas à “profusão selvagem da prática

local”. As políticas são cruas e simples. As práticas são sofisticadas,

contingentes, complexas e instáveis.

As políticas desdobram-se em meio a situações de dominação,

resistência e caos/liberdade. É preciso, contudo, superar e ampliar a

dualidade dominação/resistência. Muitas práticas ocorrem fora dos limites

do binário dominação/resistência, ocupando um terceiro espaço,

268 Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 45. p. 265-290. jun. 2007

conformado por preocupações, demandas, pressões, propósitos e desejos

nem sempre convergentes.

Todavia, a despeito das diferentes leituras que os textos políticos

podem suscitar, as interpretações não se elaboram em circunstâncias

escolhidas pelos sujeitos. A ação é limitada, embora não determinada,

pela política. Os ajustes implicados nas tentativas de resolver problemas

emergentes apresentam aspectos criativos, inventivos e, ao mesmo tempo,

confusos, contraditórios, capazes de inibir ou anular algumas das ações

efetuadas. Há, portanto, restrições e possibilidades a serem consideradas,

tanto na operacionalização como na análise de políticas.

Ball considera, ainda, que é preciso compreender como o conjunto

de textos políticos pode exercer poder por meio da produção de verdades

e conhecimentos como discursos. Discurso, nesse caso, é visto na

perspectiva foucaultiana: os discursos constituem os objetos de que falam,

procurando, simultaneamente, ocultar o modo como tais constituições

ocorreram. Discursos referem-se ao que pode ser dito, pensado e feito.

Discursos referem-se a quem pode falar, onde, quando, como e com que

autoridade. Discursos configuram itinerários para o pensamento e,

portanto, exercem autoridade.

Daí a necessidade de se levarem em conta, no estudo de políticas,

tanto leituras, traduções e mudanças quanto limites e constrangimentos.

Ou seja, a interpretação e a operacionalização de políticas necessariamente

referem-se a disputas, que se travam em uma moldura discursiva

cambiante, o que articula e restringe o pensar e o atuar.

Em minha análise, procuro acrescentar à visão de política como

texto e como discurso, sugerida por Ball, a concepção de texto político

adotada por Jenny Ozga (2000). Para a autora, os textos políticos contêm

narrativas particulares: contam uma história sobre o que é tido como

possível ou desejável de ser conseguido por meio de políticas educacionais.

Pode-se lê-los como se lê qualquer outro tipo de narrativa. Pode-se

examiná-los tomando por base personagens e ação, pode-se focalizar o

uso de estruturas da língua que visem provocar certas impressões e

respostas, pode-se analisar sua “voz” autoral ou os múltiplos pontos de

vista que supostamente abrigue.

Pode-se, de outra perspectiva, vê-los como úteis recursos de análise,

em termos das mensagens que transmitem ou procuram transmitir sobre

a fonte da política (interesses a que serve), o âmbito da política (como se

269Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 45. p. 265-290. jun. 2007

concebem e abordam as questões), bem como o padrão da política (como

se modificam as relações e que mudanças são requeridas para isso).

Ainda com base em Ozga (2000), podem-se considerar como textos

políticos tanto os mais formais, como leis, decretos, pareceres, documentos,

extratos, quanto quaisquer outros materiais que possam ser vistos como

significativos no conjunto dos parâmetros discursivos de uma investigação.

Ou seja, Ozga opta por não oferecer uma base clara para a seleção dos

textos. Ao contrário, flexibiliza de tal forma a categoria que abre espaço

para interpretações imaginativas, inspiradas nos estudos de historiadores

e analistas culturais, nas quais se pode transcender o caráter formal comum

nas análises políticas. Amparado em Ozga, incluo, no âmbito dos textos

políticos, tanto materiais elaborados por profissionais da educação da EVR

quanto falas dos mesmos em reuniões, encontros e seminários organizados

pela escola.

No exame dos textos políticos da Escola Plural e da EVR, busco

identificar interesses a serem atendidos, concepções e abordagens

escolhidas, novas relações e mudanças demandadas, preferencialmente

no que se refere a conhecimento escolar. Apóio-me também em Ball, no

esforço por compreender ajustes e limites envolvidos na operacionalização

da proposta oficial na instituição em pauta.

SS

SS

S

OBREOBRE

OBREOBRE

OBRE

OO

OO

O

DISCURSODISCURSO

DISCURSODISCURSO

DISCURSO

INSINS

INSINS

INS

TT

TT

T

AA

AA

A

URADORURADOR

URADORURADOR

URADOR

DD

DD

D

AA

AA

A

E E

E E

E

SCOLASCOLA

SCOLASCOLA

SCOLA

P P

P P

P

LL

LL

L

URALURAL

URALURAL

URAL

A Escola Plural é bastante conhecida pelos pesquisadores do campo

da educação e deve ser vista como uma possibilidade de nosso tempo.

Assim, cabe analisá-la levando em conta o contexto político, social e

educacional das três últimas décadas, bem como sua concretização como

proposta de governo.

O movimento de renovação pedagógica que se desencadeou no

país desde o final dos anos 1970 possibilitou uma série de mudanças nas

redes de ensino; entre as quais a de Belo Horizonte pode ser vista como

pioneira. O esforço por construir uma escola pública de qualidade sempre

esteve presente no ideário da democratização da educação mineira. Esse

esforço intensificou-se a partir da década de 1980, inspirando o Congresso

Mineiro de Educação e Congresso Político-Pedagógico da Rede Municipal

de Ensino de Belo Horizonte, assim como norteando as lutas por

autonomia nas escolas, por eleição de diretores, por gestão democrática,

por fortalecimento dos colegiados e dos conselhos de classe, por

270 Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 45. p. 265-290. jun. 2007

reformulações curriculares, pela criação do ciclo básico de alfabetização,

pela revitalização das escolas normais, pela construção coletiva de projetos

político-pedagógicos, por diversificação de atividades, por novas formas

de organizar espaço e tempo, pela capacitação permanente de profissionais,

por novos procedimentos de avaliação (BH/SMED, 1994; Castro, 2000;

Souza, 2000).

Essas significativas expressões do movimento de renovação pedagógica

originaram uma nova concepção de escola, mais voltada para questões de

cultura, diferença, identidade, classe social, raça e gênero, o que abriu espaço

para a Escola Plural, apresentada em fins de 1994 pela Secretaria Municipal

de Educação e implantada em 1995. Ou seja, a Escola Plural completou,

em 2005, dez anos de idade.

A que interesses parece servir a proposta? Sem desejar oferecer um

receituário, a proposta afirma ter por objetivo “subsidiar as discussões,

ser uma referência” (BH/SMED, 1995a, p. 5). Pretende ser útil para que

se enfrente o fracasso escolar dos setores populares e melhor se intervenha

nas estruturas excludentes do sistema escolar e na cultura que as legitima.

Os interesses são, portanto, os das crianças das camadas populares, para

as quais se busca construir uma escola mais democrática e inclusiva. Para

essas crianças, quer-se resgatar a escola “como espaço de formação humana,

rompendo com a concepção da mesma como espaço apenas de instrução”

(BH/SMED, 1995b, p. 6, grifos no original).

Acrescentam-se aos interesses dos alunos que têm sido reprovados

e que acabam por abandonar a escola os interesses dos docentes,

orgulhosos “diante da rica pluralidade de ações emergentes” (BH/SMED,

1994, p. 2), cuja direção se quer captar, para que, ao devolvê-la às escolas,

se forme um coletivo de professores, convencidos e comprometidos,

sensíveis às novas tendências pedagógicas e aos avanços dos direitos

sociais. A idéia é que tais profissionais se engajem na elaboração e na

operacionalização de um “novo ordenamento para a Educação Básica

da Rede Municipal, que seja mais democrático e igualitário que o atual”

(BH/SMED, 1994, p. 5). A intenção parece ser a produção de um discurso

que de fato construa o objeto sobre o qual versa, construindo-se

possibilidades para o pensamento e a ação dos professores. O convite

vai-se tornando cada vez mais irresistível: o que se tem é uma proposta

que se apresenta como oriunda da prática docente e não dos cérebros de

membros iluminados de uma comissão de especialistas. O governo

incorpora e oficializa o que se fazia e que até então se via como transgressor

271Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 45. p. 265-290. jun. 2007

e ilegítimo. Assume-se a escola emergente no discurso, instigando-se sua

efetivação e seu aperfeiçoamento na prática. A política como arte de

sedução faz-se presente.

Que questões são focalizadas nos Cadernos publicados (que sugerem

referências e buscam estabelecer elos entre a SMED e as escolas, bem

como entre as próprias escolas da rede)? Como essas questões são

abordadas? Que novas relações se propõem? Que mudanças são previstas?

Como se trata o conhecimento escolar? Na tentativa de responder a tais

perguntas, opto por debruçar-me sobre os primeiros documentos oficiais,

que focalizam os eixos norteadores da proposta, os conteúdos e processos de

formação plural, a reorganização dos tempos escolares e a nova lógica da avaliação.

Nos eixos norteadores, afirma-se a necessidade de uma intervenção

coletiva mais radical, para que se venha a redefinir a escola como espaço

e tempo de vivência dos direitos de todos à “realização plena como sujeitos

socioculturais” (BH/SMED, 1994, p. 5). Destaca-se a “sensibilidade

perante a realização do ser humano como sujeito cultural” (BH/SMED,

1994, p. 6). Insiste-se em que se recupere, nas salas de aula e nas disciplinas

do currículo, a função escolar de espaço público privilegiado de cultura.

Quer-se uma escola articulada com a produção cultural da cidade,

multiplicando seus tempos culturais, abrindo os currículos às dimensões

culturais que os transpassam. Assim, “a totalidade da experiência escolar

passa a ser cultural” (BH/SMED, 1994, p. 6).

Salienta-se, também, a experiência de produção coletiva na escola,

comentando-se que já se faz visível uma nova cultura de construção do

cotidiano da escola, que certamente precisa ser incrementada. As escolas,

acrescenta-se, somente serão educativas quando “se constituírem como

centros de formação coletiva. É nessa tarefa que elas adquirem sua

identidade e sua autonomia mais plena” (BH/SMED, 1994, p. 6).

Mudanças significativas parecem ser necessárias, tendo em mente as

virtualidades educativas da materialidade da escola. Há, então, que se

repensar aspectos físicos e condições de trabalho. Há que se reorganizar

tempo, espaços, processos, trabalho pedagógico, grades, seriações, horários,

hierarquias. Há que se mudar a escola. O reconhecimento dessa necessidade

mostra “o avanço da consciência dos profissionais” (BH/SMED, 1994,

p. 7), capazes de perceber que a experiência escolar não pode ser reduzida

a uma relação interpessoal entre educadores e educandos. O discurso

acentua o que as práticas já evidenciam e ajuda a construir novas práticas

em que novos sujeitos, norteados por novas verdades, irão desenvolver.

272 Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 45. p. 265-290. jun. 2007

A responsabilidade se divide, portanto, entre uma proposta de governo que

reflita as tendências em curso e os profissionais que irão operacionalizá-la.

Novas condições se evidenciam para a Escola Plural. É preciso

que a vivência de cada idade de formação se dê sem interrupção. A visão

da escola como “preparo para um outro momento” deve ser abandonada

em favor da escola como um tempo presente, como um tempo de vivência,

cuja finalidade encontra-se em si mesmo, não no futuro. Uma nova

concepção de infância, como tempo de formação, de cidadania, de vivência

social e de vivência de direitos hoje precisa difundir-se.

Outra mudança a ser implantada na escola refere-se aos ciclos de

formação, introduzidos em outro eixo norteador – a socialização adequada

a cada idade-ciclo de formação. Rejeita-se a lógica das precedências, dos

pré-requisitos, do vencimento de etapas de domínios e habilidades, bem

como a lógica norteadora das avaliações classificatórias e reprovatórias,

sugerindo-se que o tempo da escola corresponda a um tempo de

socialização-formação no convívio entre sujeitos na mesma idade-ciclo

de formação-socialização. Rejeita-se, assim, a organização do tempo

escolar por séries, buscando-se substituí-la por uma organização por ciclos

de formação, configurados pela faixa etária dos educandos (infância, pré-

adolescência e adolescência), que passam a eixo vertebrador da nova

estrutura.

Reafirma-se o caráter democrático da proposta da Escola Plural,

inspirada nas variadas experiências ocorridas na rede de ensino nos

últimos anos. São os organizadores dessas iniciativas – os profissionais

da educação – os que têm construído a nova escola, construindo-se, no

processo, como “um novo profissional, com nova identidade, novos

valores, novos saberes e habilidades” (BH/SMED, 1994, p. 8). Continua-

se, com intensidade, a seduzir os profissionais da rede a aderir à proposta

e a tecer um discurso que vai estabelecendo, suavemente, novos

conhecimentos, novas verdades, novos limites para a ação docente.

A proposta de cada ciclo deve abranger a aquisição de conteúdos

curriculares, bem como de suas dimensões formadoras, ou seja, deve visar à

socialização de vivências e experiências, valores, representações, identidades

de gênero, raça, classe etc. Além disso, os conteúdos devem ser trabalhados

de forma significativa, e nesse sentido, recomenda-se a articulação entre as

disciplinas curriculares e os temas contemporâneos, insistindo-se mesmo

na abordagem dos conhecimentos por meio dos projetos. Como os

273Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 45. p. 265-290. jun. 2007

conhecimentos não estão prontos não representam verdades absolutas,

considera-se que mais importante do que reproduzi-los é “aprender a

aprender e aprender a viver” (BH /SMED, 1994, p. 17). Daí a ênfase nos

projetos, que possibilitam a “construção do conhecimento significativo

de forma globalizada e relacional” (BH/SMED, 1995a, p. 38).

Essas perspectivas justificam também a inserção de temas

transversais no currículo, que favorecem o relacionamento das disciplinas

com a realidade contemporânea, dotando-as de valor social. O novo

desenho curricular pretende “a formação de sujeitos capazes de construir,

de forma autônoma, seus sistemas de valores e, a partir deles, atuarem

criticamente na realidade que os cerca” (BH/SMED, 1994, p. 19-20).

Em última análise, concebidos os conteúdos como instrumentos para a

formação dos alunos e para a compreensão do mundo em que vivem, há

que se superar o caráter fragmentado com que usualmente são tratados

nas grades curriculares.

Mudados os conteúdos e o tempo escolar, há que se modificar a

avaliação, que passa a ser diagnóstica e formativa, com o objetivo de não só

respeitar as diferenças socioculturais e de ritmos de aprendizagem dos

educandos, como também de auxiliar o professor a identificar avanços e

dificuldades no processo ensino-aprendizagem. A avaliação perde seu caráter

classificatório e passa a ser “entendida como fonte principal de informação

e referência para a formulação de práticas educativas que levem à formação

global de todos os indivíduos” (BH/SMED, 1996, p. 7).

Em resumo, o eixo da Escola Plural é o aluno, devendo a construção

curricular nortear-se por seus interesses. Para isso, cabe acolher as

manifestações culturais dos setores populares, selecionar conteúdos

significativos e úteis, trabalhar com estratégias (como o método de

projetos) que favoreçam a integração desses conteúdos, reorganizar o

espaço e o tempo na escola, agrupar os alunos por idade, modificar o

sentido e os procedimentos da avaliação. Refletindo tendências já vividas

pelos docentes, a Escola Plural apresenta-se como um discurso que as

incorpora, estimula e pretende materializá-las nas salas de aula, com a

participação desses docentes, para garantir a inclusão e a formação plena

das crianças que vêm sistematicamente fracassando em seu processo de

escolarização.

Quase dez anos após a publicação dos primeiros Cadernos, reiteram-

se propósitos e evidenciam-se novas ênfases.

274 Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 45. p. 265-290. jun. 2007

SS

SS

S

OBREOBRE

OBREOBRE

OBRE

OO

OO

O

DISCURSODISCURSO

DISCURSODISCURSO

DISCURSO

MAISMAIS

MAISMAIS

MAIS

RECENTERECENTE

RECENTERECENTE

RECENTE

SOBRESOBRE

SOBRESOBRE

SOBRE

AA

AA

A

E E

E E

E

SCOLASCOLA

SCOLASCOLA

SCOLA

P P

P P

P

LURALLURAL

LURALLURAL

LURAL

Documento recente (BH/SMED, 2003) salienta a função da escola

como tempo/espaço de formação de crianças, jovens e adultos. A intenção

é favorecer a construção de um currículo que promova a inclusão e garanta

aos alunos o acesso e permanência com qualidade na escola, a partir das

necessidades, experiências e vivências próprias de cada fase do

desenvolvimento humano.

Reafirma o ponto de vista de que “os processos escolares são

diversificados, conforme a comunidade escolar, de acordo com as condições

dos educandos e as condições de trabalho na escola, por isso propõe

referenciais curriculares que orientem a construção da proposta curricular

em todos os níveis e modalidades de ensino” (BH/SMED, 2003, p. 7), em

função da rejeição de um currículo único e obrigatório, “remetemo-nos à

própria realidade da escola, ao diagnóstico e respostas aos problemas

existentes” (BH/SMED, 2003, p. 7). O documento destaca propostas

que têm dado certo, “porque elas existem e é com elas que temos percebido

as possibilidades de aprendermos e elaborarmos melhor as respostas que

as dificuldades têm demandado” (BH/SMED, 2003, p. 7). Aos interesses

de docentes e discentes somam-se, agora, mais visíveis, os interesses

da escola.

Segundo o documento, os professores têm demandado um

aprofundamento da proposta curricular da Escola Plural, que melhor

caracterize o que é próprio de cada ciclo de idade de formação de cada

nível e modalidade de ensino e permita a construção de uma proposta

curricular centrada no interior da escola, responsável por pensar e produzir

seu currículo, “onde o profissional se forma e forma, ensinando e aprendendo

a conviver e a aprender” (BH/SMED, 2003, p. 8, grifos no original).

O propósito do novo documento é, então, “subsidiar a discussão

curricular das escolas que oferecem a Educação Básica e a modalidade de

Educação de Jovens e Adultos. São textos para serem lidos, discutidos e

modificados” (BH/SMED, 2003, p. 9). Os textos referem-se a cada um

dos ciclos que compõem a Educação Fundamental, a alunos do 2

o

e do 3

o

ciclos que ainda estão em processo inicial de construção do conhecimento

escolar, assim como à Educação de Jovens e Adultos.

O documento ressalta a necessidade de “refletirmos mais sobre o

desenvolvimento infantil e a forma de trabalharmos com estas crianças”

(BH/SMED, 2003, p. 13). Insiste na necessidade de se conhecerem os

275Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 45. p. 265-290. jun. 2007

sujeitos com os quais se vai trabalhar. Quando a escola caracteriza seu

público, fica mais fácil delimitar quais são as demandas por ele apresentadas

e como contemplá-las. Listam-se competências e processos pedagógicos

a viabilizar (que devem possibilitar o desenvolvimento das diversas

dimensões formadoras dos alunos). Os conteúdos das disciplinas

continuam a ser vistos “como instrumentos culturais, necessários para

que os alunos avancem na sua formação global e não como fim em si

mesmo” (BH/SMED, 2003, p. 28).

Buscando fornecer diretrizes mais precisas para o trabalho docente,

o documento caracteriza-se por um teor mais prescritivo que os anteriores

e por iluminar mais intensamente a dimensão psicológica do

desenvolvimento da criança e do adolescente. Será o foco no aluno e em

seu desenvolvimento que poderá propiciar as condições indispensáveis

às mudanças desejadas no currículo. Entretanto, ao oferecer subsídios

para a seleção dos elementos curriculares, confunde e mistura

competências, estratégias e conteúdos, tornando-se, a meu ver, pouco

útil para os propósitos que busca alcançar. No documento se expressa,

com clareza, a tensão (comum em muitas políticas curriculares) entre

centrar o currículo na escola (estimulando a autonomia de seus

profissionais) e subsidiar significativamente o processo de sua construção

(facilitando a necessária tomada de decisões). Em síntese, o propósito de

regular o processo de aquisição de conhecimentos e competências

desejáveis mostra-se evidente no documento.

Abordo, a seguir, uma complexa e instigante leitura dos princípios

da Escola Plural no espaço escolar.

SS

SS

S

OBREOBRE

OBREOBRE

OBRE

AA

AA

A

E E

E E

E

SCOLASCOLA

SCOLASCOLA

SCOLA

V V

V V

V

ILAILA

ILAILA

ILA

R R

R R

R

ICAICA

ICAICA

ICA

(EVR) (EVR)

(EVR) (EVR)

(EVR)

A escola, cujo trabalho acompanhei por algum tempo e à qual atribuí

o nome fictício de Vila Rica, está situada na região do Barreiro, área

eminentemente de origem operária, próxima a grandes indústrias. Essa

região configura-se como lugar onde se travaram inúmeras lutas operárias

e onde se desencadearam movimentos por melhores condições de vida e

trabalho, especialmente nos anos 1970 e 1980 (Almeida, 2005).

A comunidade de um dos bairros que compõem o Barreiro

reivindicou o projeto da escola junto ao Orçamento Participativo e

conseguiu que o prédio fosse construído. A escola veio, assim, satisfazer

uma demanda da comunidade. Com duas semanas de reunião do corpo

276 Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 45. p. 265-290. jun. 2007

docente, as matrículas foram feitas e o trabalho se iniciou. Para analisar

aspectos desse trabalho, baseio-me em textos políticos que incluem

documentos elaborados pela Secretaria de Educação sobre a escola,

documentos elaborados pela própria escola e falas dos educadores da

escola. Recorro, ainda, a observações e registros pessoais.

2

A escola começou a funcionar em 2000, de forma provisória, em

prédio alugado, tendo, a partir de 2002, passado a funcionar no prédio em

que hoje se encontra. Ela é rodeada por um muro, junto ao qual há um

espaço gramado. Nos corredores há vasos de arbustos e azaléias. Placas

indicam o acesso às salas de aula, à biblioteca (que comporta a sala de

vídeo e uma sala para informática), ao gabinete da direção, à sala de

professores, ao laboratório, à quadra de esportes, à cantina. Há um espaço

destinado às atividades de Artes. Há também uma sala denominada

multiuso, onde se realizam encontros, seminários e outras atividades que

demandam espaço e movimentação. A escola é clara, espaçosa, funcional,

muito bem cuidada e preservada (Almeida, 2005). Na Secretaria de

Educação, é vista como uma das “tetéias” da rede municipal.

Funciona em três turnos. No diurno atende a turmas dos três ciclos

e no noturno a turmas de Educação de Jovens e Adultos. O dinamismo e

o entusiasmo da diretora e do corpo docente são evidentes. Grande parte

dos professores trabalha em dois turnos e a equipe é majoritariamente

feminina. O grupo é bem qualificado: em 2003, dos 18 docentes, 15 eram

graduados em diferentes licenciaturas, dois estavam finalizando seu curso

e um havia trancado a matrícula. Parcialmente escolhidos pela diretora –

por sua vez indicada pela Secretaria –, quando da inauguração da escola,

são competentes e comprometidos com o projeto da Escola Plural. “Somos

um grupo que, na sua maioria, caminha junto já há nove anos. Um grupo

que privilegia o trabalho coletivo e que traz, na sua experiência, a

perspectiva de implementar uma escola mais inclusiva.” (Documento da

SMED/BH referente à EVR, 2003)

Recebendo dominantemente crianças dos setores populares, a escola

tem crescido e foi ampliando, gradualmente, os ciclos de formação com

que trabalha. Desde os primeiros momentos, a equipe de educadores

estabeleceu como meta o desenvolvimento do processo de construção

2

Para evitar a identificação da escola, optamos por não pontuar com clareza os documentos

a ela referentes e por não incluí-los nas Referências Bibliográficas.

277Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 45. p. 265-290. jun. 2007

curricular. A discussão se iniciou em torno dos temas que marcam o debate

educacional contemporâneo (conteúdos, competências, estratégias

pedagógicas, projetos, atividades significativas, avaliação), confirmando

o quanto o discurso da Escola Plural contribui para estabelecer contornos

para análises, reflexões e práticas.

O grupo de professores definiu uma organização curricular (para o

diurno) estruturada em torno de quatro eixos: a) Leitura e Escrita; b)

Linguagem Matemática; c) Natureza, Sociedade, Cultura e Ética; d) Arte

e Estética. Preservou-se o enfoque disciplinar em Português e Matemática

e incluíram-se as outras áreas do conhecimento nos projetos. Ainda que

questionável, a estratégia revela como, a despeito dos limites criados para

o pensamento e a ação pelas políticas, os sujeitos envolvidos nas situações

concretas e nos problemas locais que os desafiam acabam por traduzir e

modificar essas políticas.

Para melhor levar a cabo a tarefa de construir o currículo, os

professores formaram grupos de estudo (Leitura e Escrita, Matemática,

Projetos), que se reuniam semanalmente em horários definidos na carga

horária docente, para aprofundamento em: Matemática; Leitura e Escrita;

Projeto; Artes. Os grupos se constituíam de docentes com formação

acadêmica diferenciada, pois a intenção era promover um diálogo entre

as áreas e favorecer a integração curricular (Documento da SMED/BH

referente à EVR, 2003). Apesar da valorização dos grupos de estudos,

aceitos por todos os professores, foi-me feita a seguinte observação: “Será

que não corremos o risco de fragmentar nosso trabalho?”. Ao mesmo

tempo, outro professor questionava: “Como aproveitar melhor os saberes

dos colegas? Até que ponto é legal um professor sem habilidades para o

ensino de uma disciplina trabalhar com ela?”. As tensões entre uma

abordagem especializada e um enfoque mais integrador ilustram-se com

clareza nas divergentes falas selecionadas.

As discussões, leituras e reflexões dos docentes foram registradas,

elaborando-se então quatro Cadernos, publicados em 2002: a) Primeiro

Encontro – Escola: que lugar é esse?; b) Segundo Encontro – Aprender:

o que isso significa?; c) Terceiro Encontro – Aprender o quê?; d) Quarto

Encontro – Avaliação. Muitas das idéias apresentadas nos Cadernos

incluem-se em documento posterior, composto pelo Projeto Político

Pedagógico da Escola, pelos projetos desenvolvidos e pela avaliação do

trabalho realizado em 2002. Tanto nos documentos quanto nas falas dos

docentes, em seminários e reuniões, expressaram-se os interesses a que a

278 Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 45. p. 265-290. jun. 2007

escola procurava atender, os temas abordados, as condições e as mudanças

vistas como necessárias para a concretização do projeto político-

pedagógico.

São os interesses das crianças das camadas populares os que se

deseja acolher na EVR. No Primeiro Caderno, destaca-se que as classes

populares conquistaram o direito de entrar na escola. No entanto, como

ela tende a privilegiar linguagem e tarefas associadas aos “filhos dos ricos”,

acaba por “espirrar” crianças. “Como as outras crianças e adolescentes

poderiam se sentir incluídas se tudo na escola era tão diferente da vida

deles?”, pergunta-se no Caderno. “Os filhos das classes populares

conquistaram o acesso a essa escola, mas não conseguiram que essa mesma

escola os enxergasse como sujeitos que também constroem conhecimentos.

Como, às vezes, acontece até hoje...”. Conclui-se então: “Dessa forma,

outras mudanças precisam ser feitas”.

Que mudanças permitirão que a Escola Plural, consubstanciada na

EVR, possa acatar os interesses das crianças que vêm sendo “espirradas”

das salas de aula? Mudanças na gestão da escola, na organização do tempo

do aluno e do professor, na concepção de aprendizagem, no currículo,

nos conteúdos, nas estratégias, na avaliação. Daí a forte preocupação com

o conhecimento da comunidade em que a escola se insere, com os projetos

de trabalho, com atividades significativas, com os registros dos trabalhos

e das reflexões desenvolvidas. Daí o intenso foco no aluno – sujeito da

aprendizagem. Uma das professoras realçou: “Avançamos na concepção

de educação com eixo central no sujeito, na aprendizagem do aluno. O

grupo hoje compreende o processo do aprender a ler e a escrever. Em

relação à aquisição de leitura e escrita houve um salto. Conseguimos

entender como o aluno pensa”.

Conforme um dos documentos:

A visão de aprendizagem vem mudando... Aprender é como

tecer uma rede: as linhas se entrelaçam e se encontram em vários

pontos. Em cada ponto – cruzamento de linhas diferentes –

novos conhecimentos são estabelecidos, novos saberes

construídos, e a rede vai aumentando, porque aprendemos mais

a cada dia que passa.

Aprendemos quando relacionamos o que já temos construído

dentro de nós com o que aparece de novo. Relacionamos as coisas

umas com as outras. Não existe aprendizagem a partir do nada.

Nesse sentido, somos um pouco parecidos com a terra. A semente

279Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 45. p. 265-290. jun. 2007

não brota no chão árido e pedregoso, sem água e sais minerais.

Nós também quando aprendemos é porque somos solo fértil que

acolhe a nova informação e lhe dá novo significado (Projeto Político

Pedagógico da EVR, 2002, p. 11).

Quanto ao tempo escolar, a EVR segue as orientações oficiais,

organizando-se por ciclos de idade, que visam garantir mais tempo para o

aprendizado dos alunos na construção de conceitos, valores etc. Em cada

ciclo procura-se respeitar a organização dos grupos por idade, facilitando-

se as trocas socializantes e a construção de auto-imagens e identidades

mais equilibradas. No entanto, em função de dificuldades sentidas no

processo de alfabetizar crianças e, posteriormente, de ensinar Matemática

para grupos heterogêneos, a escola decidiu romper a lógica da enturmação

por idade e, três vezes por semana, durante uma hora, forma grupos de

alunos com base no nível de adiantamento. Esse procedimento de trabalho

corresponde ao “Projeto Intervenção”, que “consiste no reagrupamento

das crianças possibilitando intervenções apropriadas” (Anexo ao Projeto

Político Pedagógico da EVR, p. 28). Assim, para resolver problemas

emergentes, a EVR efetua leitura flexível e criativa dos documentos da

Escola Plural.

Quanto à reestruturação e melhor aproveitamento do tempo

docente, há três professores para cada duas turmas, que se organizam em

função dos projetos e se distribuem pelos grupos de estudos. O tempo

destinado a projeto é usado pelo professor para preparação de atividades

a serem desenvolvidas nos projetos individuais da sua turma, para reuniões

com um grupo, às quartas-feiras (em que acontecem trocas de experiências),

e, ainda, para reuniões pedagógicas às sextas-feiras (destinadas a projetos

coletivos visando à formação em serviço). São, em resumo, doze horas

para regência, seis horas para projeto e duas horas para reuniões. Mas,

segundo uma das professoras, “sentimos falta de um coordenador

pedagógico e precisamos de mais professores”. Condições ainda melhores

de trabalho parecem ser vistas como necessárias para as mudanças

pretendidas.

A visão de currículo adotada na Escola passa “pela formação ampla

do ser humano levando em consideração as suas diferenças individuais,

sua bagagem cultural, os conteúdos necessários à sua formação e todas as

mudanças pelas quais o mundo vem passando” (Projeto Político

Pedagógico da EVR, p. 10). A escola é vista como um “dos espaços

responsáveis pelo desenvolvimento das potencialidades humanas,

envolvendo as várias dimensões do ser humano” (Idem).

280 Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 45. p. 265-290. jun. 2007

O foco na formação do aluno, presente nos documentos da Escola

Plural, repete-se nos documentos da escola. É ele o eixo norteador das

atividades. “Nos preocupamos em conhecer nossos alunos e tratamos o

conhecimento de maneira dinâmica e significativa, ou seja, relacionando-o

com a vida e com os outros conhecimentos. São muitos os conhecimentos

acumulados pela humanidade, historicamente construídos e

pedagogicamente organizados em disciplinas escolares.” (Projeto Político

Pedagógico da EVR, p. 12-13) Os conteúdos disciplinares “devem ser

trabalhados de forma interativa, interdisciplinar e contextualizada”

(Ibidem, p. 13).

Os projetos ocupam lugar de destaque no trabalho realizado pela

Escola, chegando mesmo a constituir quase uma outra “disciplina”.

Segundo uma das professoras, “as outras áreas do conhecimento [que não

Português e Matemática] estariam aqui. Os alunos optam por um dado

projeto por mais ou menos dois meses.” No diurno, os projetos

desenvolvidos são: Ecolovida, Giroletras e Identidade. No noturno,

Identidade, Ecolovida e Trabalho.

Em um dos documentos, afirma-se que “nos projetos valorizamos

os conhecimentos do educando, trazemos novas informações para que

ele se perceba como sujeito, parte integrante da natureza e da sociedade

tornando-se um agente consciente, crítico e multiplicador”. Por meio dos

projetos, busca-se partir das experiências do aluno para ampliar seus

conhecimentos, permitir que ele ouça as experiências dos colegas, as

confronte entre si e as confronte com os saberes escolares. O foco continua

a ser o aluno – suas necessidades, suas experiências e seus interesses.

Espera-se que os projetos de trabalho e as atividades significativas

possibilitem um enfoque globalizador do processo de ensino/

aprendizagem. Assim, novas aprendizagens ganham sentido e significado

para o estudante. “Temos hoje a consciência de que em nossa escola

trabalhamos ora com atividades significativas, ora com projetos.” (Projeto

Político Pedagógico da EVR, 2002, p. 20)

Nos Cadernos e no Projeto Político Pedagógico encontram-se

informações sobre os projetos. Com o Projeto Identidade pretende-se que

o aluno vá construindo sua identidade de maneira integrada, abrangendo

as diferentes dimensões do conhecimento: social, afetiva, psicológica,

física, estética, ética e cognitiva. “É importante, além de trabalhar a

identidade individual da criança, construir a identidade da sala. Atividades

como desenho tipo auto-retrato e desenho da turma podem contribuir.

(Ibidem, p. 36) Leituras e traduções complexas (talvez mesmo

281Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 45. p. 265-290. jun. 2007

contraditórias) mostram-se como formas de, no espaço escolar,

materializar as intenções expressas nos documentos oficiais.

O Projeto Giroletras procura facilitar a comunicação da criança

com o mundo, por meio de questões presentes no inconsciente infantil:

“é o aflorar dos sonhos, desejos, medos e fantasias” (Projeto Político

Pedagógico da EVR, p. 30). A intenção é aprimorar habilidades que

favorecem o seu crescimento, propiciando o gosto pela leitura, a crítica

literária e o intercâmbio entre os leitores.

No Projeto Ecolovida parte-se do pressuposto que agir

ecologicamente é imprescindível para resguardar a vida no planeta.

Objetiva-se, então, a formação de uma consciência ecológica, de uma

postura individual e coletiva frente ao outro e ao meio ambiente.

No Projeto Corpo e Movimento organizam-se brincadeiras que

proporcionam à criança momentos lúdicos de interação, descontração e

relaxamento. Quer-se possibilitar “a tomada de consciência corporal e

espacial, cumprimento de regras e respeito aos combinados do grupo,

além de propiciar o despertar das emoções, da sensibilidade e da

criatividade” (Ibidem, p. 31).

Por fim, com base no Projeto Sexta Cultural abre-se espaço para

que os alunos apresentem, como desejarem, assuntos trabalhados na

semana e/ou nomes, nos projetos coletivos e/ou específicos da turma. A

criança tem a chance de expressar-se por meio de desenho, pintura, música,

dança, teatro.

De certo modo, os dois últimos projetos asseguram a presença das

disciplinas Artes e Educação Física no currículo, reivindicação clara de

seus docentes. Em um dos encontros, a professora de Artes indagou de

modo muito incisivo se a Arte deve estar contemplada no currículo, com

um tempo próprio, ou deve atravessar os outros conteúdos. Perguntou:

“Qual o papel da Arte na educação? Como entra no currículo? Entra via

projeto ou como uma disciplina? É preciso pensar também no sujeito

professor. Na organização da escola não há horário específico de Artes.

Matemática tem aula específica. Artes não. Por quê?”. A meu ver, mais

do que no sujeito professor, a docente sugere que se pense em um lugar

mais apropriado para sua disciplina, inferiorizada, segundo ela, na

hierarquia dos saberes escolares.

No Relatório do Grupo de Estudo de Projetos afirma-se a existência,

na escola, de diferentes entendimentos a respeito do tema em questão. A

282 Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 45. p. 265-290. jun. 2007

leitura de um texto sobre projetos e as discussões subseqüentes

possibilitaram a identificação de sensível lacuna no currículo: “O grande

nó para o trabalho com projetos: definir os conceitos das áreas de

conhecimento […] a serem desenvolvidos em cada ciclo”. O Relatório

apresentou perguntas levantadas durante os encontros do grupo. Destaco:

Não estamos utilizando, de fato, os projetos para alfabetizar? Como

favorecer a aprendizagem tendo em mente a diversidade cognoscitiva dos

alunos? Tendo percebido discriminação racial entre as crianças, não caberia

incluirmos a questão no currículo? No mesmo Relatório incluíram-se

também propostas: a continuidade dos grupos de estudo e a socialização

de seus processos, assim como a organização desses grupos com base nas

áreas de conhecimento do Projeto Político Pedagógico.

Respostas, reações e adaptações subvertem e/ou aperfeiçoam o que

o discurso dos documentos oficiais constrói. As brechas são ampliadas,

as dificuldades percebidas e enfrentadas, por vezes crítica e criativamente,

por vezes apressada e contraditoriamente. As dúvidas se explicitam e novas

formas de pensar a organização do currículo se misturam às mais

tradicionais, configurando uma mescla pouco usual, porém formulada,

experimentada e modificada ativamente pelos docentes. Reações às

determinações da Secretaria de Educação (e mesmo aos propósitos da

diretora) se fazem sentir, desestabilizando-se crenças, princípios e

estratégias antes aceitas. O currículo oficial se refaz, se enriquece, se

subverte. Ou seja, as operacionalizações jamais se fazem simples e

linearmente; decorrendo, sim, de decisões sofridas, coletivamente

tomadas, e de corajosas tentativas de alteração da prática pedagógica,

ainda que nem sempre bem-sucedidas.

A complexidade do diálogo que a escola trava com a proposta oficial

se faz notar. Como assinala Bakhtin (2004), o diálogo constitui um caso

particularmente evidente e ostensivo de contextos diversamente

orientados. “Os contextos não estão simplesmente justapostos, como se

fossem indiferentes uns aos outros; encontram-se numa situação de

interação e de conflito tenso e ininterrupto.” (Ibidem, p. 107)

A tensão implicada no trabalho com projetos, derivada das demandas

envolvidas no desenvolvimento de uma perspectiva globalizante e, ao

mesmo tempo, nos indispensáveis esforços por ordenação e sistematização

os conhecimentos, expressou-se em diversos momentos de minhas idas à

escola. Em uma das reuniões, uma professora afirmou: “O projeto acaba

sendo uma camisa-de-força, pois acaba tudo sendo projeto e a escola gira

283Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 45. p. 265-290. jun. 2007

em torno disso. Os projetos acabam sendo institucionais, com os mesmos

conteúdos. Há necessidade de clarear os conteúdos das disciplinas e

investir mais neles.” Outro docente perguntou: “Como ampliar o

conhecimento do aluno? Os conhecimentos ficam vagos. Eles estão mais

claros em Português e Matemática que não são trabalhados como

projetos. Temos que definir os conceitos de cada área a serem

desenvolvidos em cada ciclo.”

Outra professora, participante do Projeto Ecolovida, comentou:

“Me senti perdida. Não conseguia saber o que os alunos já tinham de

conhecimentos anteriores. Como trabalhar sem saber isso? Somente no

final a coisa melhorou. Só há um mês, partindo da queimadura de um

aluno, consegui sistematizar um pouco.” Ainda outra acrescentou: “O

projeto Ecolovida visava trabalhar a consciência ecológica. A idéia era

falar sobre animais, o homem neles inserido, a água. Mas não ficavam

claros, de fato, os conceitos que estavam sendo trabalhados. Um projeto

não deve ter início, meio e fim? Não parte de alguma pergunta, de um

problema? Não tem produto? Acho que não sabemos de fato o que é

projeto.

A diretora da escola, no entanto, defende o trabalho por ela

valorizado e alerta: “Se você enxerta conteúdos no projeto, que não se

refiram ao projeto, você mata o projeto. O trabalho de projeto tem que

ser prazeroso, tem que ter motivação.

Em reunião na Secretaria de Educação, sistematizaram-se algumas

das dúvidas dos docentes da escola: como trabalhar conteúdos e conceitos

de forma significativa? Como dosar os conteúdos dentro dos ciclos? Como

garantir a formação integral do aluno sem perder de vista os conteúdos?

Como avançar na prática pedagógica dos projetos? Como garantir a

construção do conhecimento trabalhando com projetos? Que conceitos

escolher? Como lidar com turmas heterogêneas? Como dividir os alunos

por turmas?

Em decorrência de conquistas, incertezas e ajustes em todo o

processo de construção curricular, os grupos de estudo se organizaram, a

partir de 2004, da seguinte forma: Grupo de Ciências, Grupo de História,

Grupo de Geografia, Grupo de Artes/Educação Física. Os grupos

estudaram os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) dessas áreas,

confrontando-os com os projetos. Os Cadernos da Escola Plural foram

revisitados, mas avaliados como pouco úteis para a definição dos

conteúdos por ciclo. “O medo de prescrever acaba levando à frouxidão”,

comentou uma docente.

284 Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 45. p. 265-290. jun. 2007

Em encontro da equipe de docentes, em 2004, a questão da seleção

dos conteúdos permanecia candente, como se verifica nas falas que se

seguem, de diferentes docentes: “Pensamos na escola como o único lugar

em que se aprende. Isso é preocupante. A dinâmica da escola é lenta. Ela

não consegue concorrer com a televisão.” Outro professor replica: “Mas

a mídia é diferente do que valorizamos. Cabe à escola instrumentalizar e

sistematizar.” Outro ainda pergunta: “Como selecionar conteúdos

importantes?”. Diferentes respostas se ouvem: “Seria mais importante

uma metodologia de acesso ao conhecimento.” “Levar em conta a criança.

“É preciso que o conhecimento seja útil para estabelecer relações.”

“Estabelecer relações entre o conhecimento e o aluno.” “Que é problema

para o aluno? Às vezes o interesse não é tão imediato.” “Estabelecer

relações entre os conteúdos.” “Relações com a sociedade.” “Ler o mundo

amplamente.” “Em História precisamos ensinar o que são permanência e

mudança. Que fatos são importantes para esses conceitos?” “Que

conteúdos são essenciais? O especialista e o livro didático podem ajudar

a esclarecer.” “O especialista também tem dúvidas. O especialista não dá

conta.” “Não sabemos definir aquilo que o aluno não pode deixar de saber.

Não podemos trabalhar de forma vaga.”.

Em abril de 2004, a EVR organizou um seminário em que os grupos

de estudo, com base nas discussões travadas nos encontros, apresentaram

sugestões, reflexões e dúvidas referentes às concepções, às noções e aos

conceitos a serem trabalhados em Matemática, Português, História,

Geografia, Ciências, Educação Física e Artes. Os representantes de Artes

e de Educação Física, ao mesmo tempo em que reafirmaram as

especificidades de suas áreas, propuseram-se a um diálogo com as demais,

sem a elas se submeterem.

Um mês depois, a diretora afirmou que o seminário levantou uma

série de demandas que ainda não haviam sido suficientemente digeridas.

Mas acrescentou: “Ficou claro para o grupo que a EVR não trabalhava

com projetos, ainda que trabalhasse bem.” Os projetos da escola eram

mais projetos institucionais, mais efetivos para trabalhar ações que

conhecimentos. Uma professora destacou o quanto o seminário instigou

a continuidade das discussões, acentuando o quanto se havia avançado,

principalmente no diurno. Outra valorizou a mobilização dos docentes,

que apreciam poder tomar decisões de forma autônoma e participar da

construção coletiva do currículo.

Os projetos continuaram em cena, mas as perguntas se modificaram.

“Que vamos trabalhar de História, Geografia e Ciências nos projetos?”

285Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 45. p. 265-290. jun. 2007

“O que da cultura vamos considerar?” A diretora já se mostra menos

desconfiada em relação às disciplinas, afirmando não ver problemas em

trabalhar com disciplinas e com projetos. “O importante é não deixar de

dar conta dos conteúdos relevantes.” Outra professora comenta: “Há

necessidade de discussão coletiva para decidirmos que conhecimentos

seriam fundamentais.

No início de dezembro de 2004, novo seminário reuniu docentes e

membros da Secretaria de Educação. Mais uma vez os grupos

apresentaram os avanços conseguidos e, para cada área (Português;

Matemática; Arte, Estética e Educação Física; Ciências, Geografia e

História), discutiram: relevância, perspectivas, ações pedagógicas,

conteúdos a serem aprendidos. Na Educação de Jovens e Adultos, os

docentes definiram temas geradores, passíveis de favorecer “o diálogo entre

os conhecimentos historicamente construídos e os desafios do mundo

atual”. São eles: ecologia, identidade, trabalho. Promovem-se também

aulas coletivas, vistas como atividades que mobilizam professores e

estudantes em torno de um tema. A metodologia prevista é a pedagogia

de projetos. O coletivo de professores planeja inicialmente o trabalho,

que se vai enriquecendo com a intervenção de estudantes e outras pessoas

interessadas. Fecha-se o ciclo de cada aula com uma avaliação oral ou

escrita que busca sintetizar os conhecimentos estudados.

A importância dos conteúdos parece ter sido resgatada. As

discussões travadas mostraram-se mais ousadas, mais ricas. O medo dos

conteúdos foi perdido. A vara, curvada demais para o lado do aluno e das

estratégias, retomou um equilíbrio (instável e provisório, certamente).

CC

CC

C

ONSIDERAÇÕESONSIDERAÇÕES

ONSIDERAÇÕESONSIDERAÇÕES

ONSIDERAÇÕES

F F

F F

F

INAISINAIS

INAISINAIS

INAIS

O exame de textos políticos da Escola Plural e da EVR suscitou-

me reflexões sobre a complexa relação entre documentos oficiais e

experiências locais, assim como sobre a necessidade de se repensar a

importância e a abordagem do conhecimento escolar no currículo.

Há que se destacar a complexidade do processo curricular vivido

pelos competentes e comprometidos sujeitos da EVR. As atividades

realizadas configuraram uma delicada teia em que movimentos divergentes,

criativos, cuidadosos, avançaram e retrocederam, em meio a disputas e

negociações, em uma trama local na qual o oficial jamais se materializou

de forma linear.

286 Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 45. p. 265-290. jun. 2007

O que se viveu na escola foi um denso processo de significação e

ressignificação de textos, um processo sem fim, no qual cada leitura se

fez com base em sentidos já dados. Como afirma Stuart Hall (2003, p.

363), “Se você tem de dizer algo novo, é porque o processo está

transformando os significados que já estão lá. Portanto, cada ato de

significação transforma o estado efetivo de todas as significações já

existentes.

A despeito do empenho da Secretaria de Educação em promover

uma “leitura preferencial” de seus documentos, os textos escapam de suas

mãos, são lidos de uma outra forma. Em consonância com os pontos de

vista de Stephen Ball e de Stuart Hall, não vale acreditar, todavia, que

toda e qualquer leitura seja possível. Afinal, sempre se procura controlar

as formas de significar o mundo.

Qual o resultado desse imprevisível processo de negociação? Nem

uma leitura transparente dos documentos, nem o pleno exercício da

resistência e da autonomia. Sustenta Hall (2003, p. 371): “Prefiro algo

entre esses dois extremos. Então, eu simplesmente falo do código

negociado.” Acrescenta o autor: “A maioria de nós nunca está

completamente dentro de uma leitura preferencial ou totalmente a

contrapelo do texto. Nós sempre lutamos e remamos contra a maré dele.”

(2003, p. 371)

Nesse sentido, cabe entender os esforços desenvolvidos na EVR

como leituras negociadas – “provavelmente o que a maioria de nós faz,

na maior parte do tempo” (Ibidem, p. 371). Leituras negociadas que

versaram, dominantemente, sobre os sentidos dos conteúdos e dos

procedimentos curriculares. No processo, driblaram-se algumas das leituras

preferenciais sugeridas pela Secretaria, evidenciando-se que “o elemento

de fechamento jamais funciona, o que não significa que não esteja

presente” (Ibidem, p. 372).

Volto-me, então, para o alvo central das discussões travadas na EVR

– o conhecimento escolar –, objeto de minha atenção em recentes artigos

(Moreira, 2004/2005). Apoiando-me em Muller (2003), tenho procurado

argumentar que, no processo de construção curricular, os focos na criança

e na cultura, ainda que indispensáveis, são insuficientes. Insisto no sentido

de que a eles se associe uma aguda preocupação com o conhecimento,

com sua aquisição, com uma instrução ativa e efetiva, com um professor

ativo e efetivo, que bem conheça, escolha, organize e ensine os conteúdos

de sua disciplina ou área do conhecimento.

287Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 45. p. 265-290. jun. 2007

Não basta abrir a escola a diversas manifestações culturais, não

basta ampliar os tempos culturais no currículo. Não basta uma escola

aberta aos saberes e às experiências dos estudantes e da comunidade

em que se insere. Não basta conceber e tratar o aluno, que vem sendo

excluído da escola e da participação na sociedade, como um ser cultural.

Não basta procurar desenvolver no aluno uma auto-imagem positiva.

Não basta organizar-lhe um espaço para convivência, socialização e

aprendizado de valores e condutas. Não basta a sensibilidade com a

totalidade da formação humana. Não basta clamar pelo direito de todos

os estudantes à realização plena como sujeitos socioculturais. Se tudo

isso é indispensável, não é suficiente.

Há que se voltar a considerar mais rigorosamente os processos de

selecionar, organizar e sistematizar os conhecimentos a serem ensinados

e aprendidos na escola. Talvez valesse a pena pensar no que Muller (2003)

denomina de “coerência conceitual”, que estimula a promover, na sala de

aula, uma evolução coerente da aprendizagem de conceitos. O autor insiste:

É preciso considerar o “conhecimento como conhecimento”, não apenas

como instrumento para a formação, para a conscientização, para a

promoção do indivíduo.

Ou seja, o conhecimento não pode ser tido, simplesmente, como

meio para tornar o ser humano mais humano. Pode ser útil levar em conta

a recomendação de Dewey no sentido de que a ênfase no desenvolvimento

não implique um currículo apenas centrado no aluno ou em atividades,

no qual se negligenciam a seleção e a organização de conteúdos de fato

relevantes. Cabe acrescentar que relevância, nesse caso, precisa incluir

tanto a preocupação com conteúdos significativos, que levem em conta

interesses e necessidades do aluno, como a preocupação com a seqüência

de conteúdos, necessária a uma apreensão lógica e ordenada dos mesmos.

Faz-se necessário, então, um certo cuidado para que não se ignore a

chamada “lógica das disciplinas” em prol do foco no desenvolvimento

integral do educando em uma realidade plural.

Os significados e os padrões culturais do cotidiano não são

suficientes para garantir o aprendizado do aluno e ampliar seus horizontes.

Precisamos, além da imersão nos padrões do cotidiano, da imersão nos

padrões da disciplina escolar. Para isso, há absoluta necessidade de um

professor capaz de uma instrução explícita, planejada e efetiva. Há

necessidade de um professor que, além de bem conhecer o aluno e a

comunidade da escola, conheça os conceitos a serem dominados e seja

bem sucedido ao orientar o aluno na consecução das metas definidas. O

288 Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 45. p. 265-290. jun. 2007

foco do processo se dispersa, assim, entre aluno, cultura, professor e

conhecimento.

Em outras palavras, não há como abrir mão de bons professores,

capazes de bem selecionar procedimentos e conteúdos. Associo ao ponto

de vista que estou defendendo o alerta de Bauman (1998), referente às

possibilidades de emancipação na contemporaneidade. Para ele, na

modernidade, a busca (nunca totalmente bem-sucedida) por constituir a

ordem implicava neutralizar os poderes intermediários das comunidades

e das tradições. A intenção era “desencaixar” os indivíduos, fazendo-os

livres para escolherem a vida que lhes apetecesse viver. A intenção era

desafogar o indivíduo do peso de uma identidade herdada. A identidade

convertia-se em uma realização própria, em uma tarefa individual, de

responsabilidade do indivíduo.

Na contemporaneidade, quando incerteza, insegurança, fragilidade,

descompromisso, provisoriedade, individualismo, consumismo,

discriminação, violência, desigualdade e desesperança compõem o cenário

em que se vive, pensar em emancipação, em autonomia, demanda que se

retome e complete a tarefa de “desencaixe” da modernidade (Bauman,

1998). Concordando com essa perspectiva, argumento que se pode

favorecê-la, no currículo, evitando-se a formação de guetos, evitando-se

ficar restrito aos artefatos culturais familiares ao aluno, evitando-se passar

da essencialização de padrões hegemônicos para a celebração de padrões

minoritários. Para se garantir ao aluno o direito de escolher sua identidade,

faz-se necessário impedir que o Estado ou a “tribo” acabe por dele retirar

tanto essa liberdade de escolha quanto essa responsabilidade. Para isso,

contudo, há que se criar oportunidades de acesso às ciências, às artes, a

novos saberes, a novas linguagens, a novas interações, a outras lógicas, à

capacidade de buscar conhecimentos, ao aprofundamento, à sistematização

e ao rigor. Há que se considerar o aluno em suas diferentes dimensões

sem que, no entanto, se coloquem em plano secundário o intelecto e a

aprendizagem. Em última análise, sustento que a revalorização do

conhecimento escolar no currículo pode constituir útil instrumento para

o resgate da tarefa de “desencaixe” ansiada por Bauman.

Lanço ainda mão dos pontos de vista de Popkewitz (1998) para

argumentar a favor do conhecimento escolar. Em propostas curriculares

que visem fortalecer o poder dos alunos das camadas populares pode-se

criar, com base nos conhecimentos pedagógicos empregados, um espaço

de “confinamento” nos quais esses alunos sejam sempre os “outros”, os

289Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 45. p. 265-290. jun. 2007

“diferentes”, os “impuros”, os “estranhos”. Obviamente, os resultados

tenderão a ser opostos aos esperados.

Em outras palavras, os conhecimentos pedagógicos norteadores das

decisões curriculares podem inscrever certa seletividade no modo como

os docentes pensam, sentem e falam sobre os estudantes. Podem orientar

seus discursos no sentido de classificar a criança, construindo-se um espaço

em que a criança jamais pode ser uma criança “padrão”, “normal”. O que

estou acentuando é que esses conhecimentos são produtivos, capazes de

qualificar determinados estudantes e desqualificar outros para a cidadania.

Sugiro que a supervalorização do aluno e do desenvolvimento, que

venho encontrando no discurso de propostas curriculares oficiais

alternativas, e a conseqüente secundarização do conhecimento escolar

(restrito a instrumento para a formação plena do estudante) pode ajudar

a criar um “compartimento” no qual esse estudante, que tanto se deseja

promover, seja situado e visto sempre como “diferente”, incapaz de

apreender conteúdos formais das disciplinas científicas, possivelmente

úteis à tarefa do “desencaixe” a ser retomada na contemporaneidade.

Acredito, ao mesmo tempo, que leituras críticas, criativas, negociadas dos

textos oficiais, podem talvez desestabilizar os conhecimentos pedagógicos

que têm norteado nossas escolhas. Podem talvez estimular novas formas

de pensar e de agir na construção de uma escola mais justa e eqüitativa.

RR

RR

R

EFERÊNCIASEFERÊNCIAS

EFERÊNCIASEFERÊNCIAS

EFERÊNCIAS

B B

B B

B

IBLIOGRÁFICASIBLIOGRÁFICAS

IBLIOGRÁFICASIBLIOGRÁFICAS

IBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, C. L. Da igualdade de direitos ao direito à diferença: interfaces no cotidiano

de uma escola plural. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de

Uberlândia, Uberlândia, 2005.

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2004.

BALL, S. Education reform: a critical and post-structural approach. Buckingham:

Open University Press, 1997.

BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

BELO HORIZONTE. Secretaria Municipal de Educação. Proposta político-

pedagógica. Escola Plural, Caderno 0. Belo Horizonte: Secretaria Municipal de

Educação, 1994.

BELO HORIZONTE. Secretaria Municipal de Educação. Construindo uma referência

curricular para a escola plural: uma reflexão preliminar. Escola Plural, Caderno 1.

Belo Horizonte: Secretaria Municipal de Educação, 1995a.

290 Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 45. p. 265-290. jun. 2007

BELO HORIZONTE. Secretaria Municipal de Educação. Proposta curricular da

Escola Plural: referências norteadoras. Escola Plural, Caderno 2. Belo Horizonte:

Secretaria Municipal de Educação, 1995b.

BELO HORIZONTE. Secretaria Municipal de Educação. Avaliação dos processos

formadores dos educandos. Escola Plural, Caderno 4. Belo Horizonte: Secretaria

Municipal de Educação, 1996.

BELO HORIZONTE. Secretaria Municipal de Educação. Referenciais curriculares.

Escola Plural, Educação Básica. Belo Horizonte: Secretaria Municipal de

Educação, 2003.

CASTRO, E. V. Movimentos educacionais em Minas precursores da Escola

Plural. In: DALBEN, A. I. L. F. (Org.). Singular ou Plural? Eis a escola em questão!

Belo Horizonte: GAME / FAE / UFMG, 2000.

HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora

UFMG, 2003.

MOREIRA, A. F. B. Currículo, diferença cultural e diálogo. Educação e Sociedade,

79, p. 15-38, 2002.

MOREIRA, A. F. B. Articulando desenvolvimento, conhecimento escolar e cultura:

um desafio para o currículo. Cadernos de Educação, 22, p. 55-74, 2004.

MOREIRA, A. F. B. O estranho em nossas escolas: desafio para o que se ensina

e o que se aprende. In: GARCIA, R. L.; ZACCUR, E.; GIAMBIAGI, I. (Org.).

Cotidiano – diálogos sobre diálogos. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

MOREIRA, Antonio Flavio B.; CARVALHO, Merise S.; CÂMARA, Michelle J.

A diversidade cultural nas propostas Multieducação e Escola Plural. In: II

SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE EDUCAÇÃO INTERCULTURAL,

GÊNERO E MOVIMENTOS SOCIAIS. Anais... Florianópolis: UFSC, 2003.

MULLER, J. Revisitando o progressivismo: Ethos, política, pathos. In: GARCIA,

R. L.; MOREIRA, A. F. B. (Org.). Currículo na contemporaneidade: incertezas e desafios.

São Paulo: Cortez, 2003.

OZGA, J. Investigação sobre políticas educacionais: terreno de contestação. Porto: Porto

Editora, 2000.

POPKEWITZ, T. Struggling for the soul: the politics of schooling and the

construction of the teacher. New York: Teachers College Press, 1998.

SOUZA, M. G. Educação e diversidade cultural: uma análise da proposta da Escola

Plural do Município de Belo Horizonte, MG. Dissertação (Mestrado) – PUC-RJ,

Rio de Janeiro, 2000.

Recebido em:Recebido em:

Recebido em:Recebido em:

Recebido em: 01/01/2006

AprApr

AprApr

Apr

oo

oo

o

vv

vv

v

ado em:ado em:

ado em:ado em:

ado em: 15/03/2007