A religiosidade popular no brasil

Considerada pelo Papa Bento XVI “precioso tesouro da Igreja Católica”, a religiosidade popular está fortemente presente na fé do povo. Durante a sessão inaugural da Conferência de Aparecida, no dia 13 de maio de 2007, Bento XVI afirmou: “Esta religiosidade expressa-se também na devoção aos Santos com as suas festas patronais, no amor ao Papa e aos demais Pastores, no amor à Igreja universal como grande família de Deus que nunca pode, nem deve, deixar abandonados ou na miséria os seus próprios filhos. Tudo isto forma o grande mosaico da religiosidade popular que é o precioso tesouro da Igreja Católica na América Latina, e que ela deve proteger, promover e, naquilo que for necessário, também purificar”.

A religiosidade popular está presente no cotidiano do povo. Em entrevista ao Alegrai-vos, Frei Luiz Carlos Susin afirma que a “religiosidade popular está muito ‘colada’ às experiências de vida”. Trata-se de expressões, atitudes e gestos que expressam uma relação pessoal com Deus. Beija-se a cruz, faz-se romarias e peregrinações, insere-se elementos culturais nas celebrações – a exemplo da missa crioula, ou ainda, busca-se uma cura através de benzedeiras ou padres.

Natural de Caxias do Sul-RS, Luiz Carlos Susin é doutor pela Universidade Gregoriana, de Roma. É membro da direção da revista Concilium, publicação internacional de teologia, traduzida em sete línguas. Atualmente, Frei Susin também é professor de teologia na PUCRS..

A entrevista é de Elton Marcelo Aristides e publicada no blog Alegrai-vos, 30-09-2012.

Eis a entrevista.

Quais são as principais características da religiosidade popular?


A religiosidade popular está muito ‘colada’ às experiências de vida e, sobretudo, nas experiências em que a vida está mais ‘palpitante’. Ela está também onde se mostra um mistério maior, por exemplo, no nascimento, na morte, na adolescência – quando é preciso mudar de etapa de vida. Aí ela se manifesta de forma mais clara. Mas, sempre ligada a expressões de vida da família, da economia e na vida em sociedade.

A religiosidade popular tem quatro sacramentos: nascer, crescer, engajar-se e morrer. Coincidem com a nossa tradição cristã com o batismo, a primeira comunhão – não todas as comunhões, casamento e funeral, que inclusive não é o próprio sacramento que seria a unção do óleo, mas, o que ‘toca’ são os ritos de passagem. Nos ritos de passagem a gente vê melhor a religiosidade popular ‘colada’ na vida. A vida exige ser ritualizada e ter um sentido e esse sentido se transforma em religião.

Fundamentalmente, o que a religião católica pode aproveitar desta religiosidade popular?


Na própria evangelização, se a gente olhar como Jesus se comportou nas narrativas dos evangelhos, e mesmo Paulo depois, a própria pureza da fé cristã precisa contar com a expressão religiosa. Ela tem uma dimensão cultural, econômica e social, como aparece sempre em todas as religiões. E é neste sentido que a gente pode fazer uma diferença entre o Evangelho e a religião, entre a fé a religião – mas não uma diferença a ponto de separar, como se pudéssemos ter uma fé e um Evangelho em estado puro. Em toda evangelização deve-se prestar a atenção na maneira como a cultura popular se expressa e assim, evangelizar os rituais e as expressões religiosas do povo. Isso significa colocar dentro de um horizonte cristão sem retirar. A gente não constrói a religiosidade, ela já está presente em uma tradição ou existe naturalmente na vida. Pode-se cultivar através do discernimento e de uma sensibilidade que sabe distinguir o que é o Evangelho, o ato de evangelizar a religiosidade, trazendo mais força, pureza e coerência do ponto de vista cristão.

Tendo presente a cultura gaúcha, na sua opinião, as expressões tradicionalistas na missa crioula podem ser consideradas um traço da religiosidade popular?


Historicamente a missa crioula foi uma maneira de adaptar a missa para uma cultura gaúcha que começa com o padre Paulo Aripe e, portanto, foi uma possibilidade que somente com o Concílio Vaticano II começou a ‘florir’. Antes disso não se pensava a respeito. Era possível que os gaúchos da fronteira fossem à missa de bota e lenço, mas não passava muito disso.

Sobre a missa crioula tem-se a crítica de que a gente deixou, sem o discernimento, entrar na representação religiosa da missa as estruturas da instância, do machismo, do patriarcado. Também se inseriram as relações de poder do patrão, peão e prenda e a reprodução da estância dentro da missa. Eu acho que isso é empobrecer também a visão de gaúcho e não somente empobrecer a missa. Ela pode acabar distorcendo a ideia de Deus, que é a ideia de um patrão na instância. O desafio está em amadurecer uma linguagem que tenha os elementos culturais gaúchos. Por exemplo, com certos estilos musicais a gente redescobriu um gaúcho, que é poeta, e que é capaz de pajear e que através de uma milonga pode produzir um verdadeiro salmo de súplica.

Eu vi naquele Fórum da Igreja Católica (referindo-se ao 1º Fórum da Igreja Católica no RS, realizado de 20 a 23 de setembro de 2007, na PUCRS – Porto Alegre-RS), quando foi rezada a missa crioula, que a missa não ficou lá grande coisa, mas a homilia de Dom Gílio foi irretocável. Foi de uma beleza como alguém que está pajeando e transmitindo o Evangelho no espaço gaúcho, sem nunca ter caído nestas metáforas que são uma armadilha.

Dentro da religiosidade popular, qual é o papel das benzedeiras e curandeiros?


A cura, neste caso, tem uma raiz religiosa que é desde o início das expressões humanas, porque, na origem, o exercício sacerdotal e o exercício medicinal não estão separados, eles estão unidos. O rito de cura, passado da enfermidade para o estado saudável é uma experiência religiosa. Por isso que a gente sempre agradece de uma forma a Deus e tem ação de graças para fazer. Por isso, a mão que cura é sempre uma mão guiada por Deus. Tão claro, que a cura, a religião e a medicina estão sempre dando voltas juntas.

Neste sentido, Jesus também teve este papel importante de ser visto como um taumaturgo, alguém que faz coisas maravilhosas curando e, curando eles louvam a Deus. O que, de novo, isso mostra uma origem comum. Também, porque diante de uma medicina moderna, que é uma medicina muito objetivada na ciência, desde o diagnóstico e nos exames com aparelhos, ao invés de tocar o doente com a mão, ao invés de aproximar o rosto e de olhar nos olhos, fica delegando pros aparelhos. E depois, no tratamento delega tudo para a química, para comprimidos e para tratamentos impessoais. O que nós temos nesta experiência de curandeirismo é que são pessoas que se relacionam com pessoas. São pessoas que, geralmente, também tem experiências de cura e se tornam curadoras de outras pessoas num relacionamento que envolve, às vezes, até emoção, afetividade, o toque físico e, portanto, vale aquele provérbio que diz: mais do que o chá, é a mão que estende o chá que cura.

Então, isso mostra que a saúde é uma questão relacional. Quando a gente se relaciona com uma fonte de saúde, a gente se torna saudável. E o curandeiro é isso, uma promessa de fonte de saúde. De novo, acho que precisa discernimento, porque no processo e no ritual existem elementos simbólicos. Usa-se alguma coisa simbólica e se usa algum objeto simbólico. Esses gestos podem ser evangelizados. Podem ser, portanto, melhorados, se não se fizer isso com imposição e violência.

Como alguém que procura um curandeiro pode saber que está agindo corretamente?


Os curandeiros que fizeram bastante sucesso e deram certo, geralmente, são padres ou são essas mulheres consideradas ‘grandes mães’ ou então, vem da cultura indígena. Na cultura indígena, esta visão mais espiritual da enfermidade e da cura é muito forte. Tanto que o rezador dos índios guaranis, o caraí, diz que eles até trazem para o hospital da PUC, que é referência aqui em Porto Alegre para tratar os índios, mas antes de curar o corpo eles têm que curar o espírito. Se não curar o espírito, o corpo não ajuda. Isto tem uma sabedoria. Se a pessoa não está se ajudando espiritualmente, se ela não tem energia e não tem vontade, isso precisa ser curado para poder tratar também o corpo.

Volto para a questão dos padres. Há uma ideia de que o padre é uma pessoa que faz o bem e, geralmente, as curandeiras ou benzeiras, quando percebem que há alguma desconfiança, dizem só faço para o bem, só faço coisa boa. São pessoas boas, e se são pessoas de bem, então só pode ter coisa boa. A gente pode se confiar porque uma das coisas importantes da cura é a gente se entregar de alguma forma nas mãos de quem cura. Precisa ter fé mesmo, isso é muito importante. Por isso, como há uma visão do padre ou da benzedeira como uma matriarca, que é aquela que quer o bem e tem a capacidade de fazer este bem acontecer, isso é um critério. Isso pode ser visto também através de outros elementos. Por exemplo, o padre também prega na igreja e diz coisas boas e a gente vê que os outros também o consideram uma pessoa boa. Ou então, esta mulher que está lá na vila, mas que também cuida das crianças e também é vista pela vizinhança como uma pessoa boa. Então, não é um charlatão que está ai para ganhar dinheiro com isso, pois isso aparece com certo cinismo e este cinismo acaba aparecendo.

https://doi.org/10.23925/1677-1222.2021vol21i3a5
Brasil oitocentista, Viajantes estrangeiros, religião, religiosidade popular

O presente artigo busca estabelecer, analisar e interpretar os relatos dos viajantes estrangeiros John Mawe, Alcide D’Orbigny, Louis e Elizabeth Agassiz, que tratam da religião e da religiosidade brasileira oitocentista (1808-1866). Para tanto, atravessamos um caminho de dois eixos, que perpassam uma investigação de cunho histórico, tencionando o embate entre sujeito e objeto. Em princípio, trata-se de evidenciar uma narrativa religiosa nas entrelinhas dos relatos estabelecidos, buscando sistematizar e, portanto, organizá-los em suas especificidades temáticas e discursivas. Por fim, busca-se ressaltar os relatos que tratam, especificamente, das manifestações da religiosidade popular brasileira, na medida em que esta salta dos relatos enquanto elemento estranho, heterogêneo e marginal. Desta forma, ostenta um retrato interpretativo sobre o universo religioso do Brasil no século XIX, tendo a literatura de viagem como campo de aproximações para com os fenômenos religiosos.

Mestre em Ciências da Religião pela PUC-Campinas.

Doutor em História Econômica pela USP.

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