O que é fundamentalismo religioso

Humberto Ramos

O termo fundamentalismo virou xingamento. Essa expressão aparece geralmente em contextos nos quais se quer qualificar o perfil religioso de um indivíduo ou de um grupo. E como a religião sempre ocupou lugar relevante nas estruturas sociais, gozando hoje de larga exposição midiática, por meio da qual veicula seus conceitos e preconceitos, a expressão vem se popularizando, e, talvez, também se banalizando.

Uma vez popularizado, corre-se o risco da má utilização da palavra, de uma confusão conceitual. Bem como acontece muitas vezes com os conceitos e ideias acerca de “direita” e “esquerda”, “comunismo”, “anarquismo” e “totalitarismo”, dentre outras, quando adotadas pelo senso comum.

Acerca disso, sociólogo Peter L. Berger (2012, p. 63) nos alerta:

O termo «fundamentalismo» tem sido utilizado de modo bastante flexível no discurso recente – nos círculos acadêmicos, na mídia e também em conversas cotidianas. Por conseguinte, homens-bomba muçulmanos, missionários evangélicos e judeus ortodoxos, todos têm sido chamados de «fundamentalistas» – uma ampla utilização que induz a sérios problemas de percepção.

Vê-se, então, que não é algo tão raro a confusão conceitual, ao contrário. Portanto, importa vez e outra afirmar (relembrar) o significado adequado de cada expressão – e até mesmo explicar como se desenvolveu a modificação de conceitos acerca dela ao longo da história.

Quanto à denominação “fundamentalista”, ela teve sua utilização inicial em contexto protestante estadunidense no início do século XX, servindo à identificação de grupos conservadores que se opunham ao liberalismo teológico adotado por determinadas instituições e indivíduos nos Estados Unidos. Os conservadores de então editavam uma publicação em defesa daquilo que consideravam valores e conceitos inegociáveis da fé cristã em resposta às posições teológicas liberais. Tal publicação fora nomeada de “The Fundamentals”.

Que pese esse contexto histórico, o termo já há um tempo que se descolou de sua significação inicial. De modo indiscriminado, também vem sendo utilizado para classificar grupos religiosos extremistas, muitos dos quais lançam mãos da violência, seja ela verbal ou física. Assim, pelas veiculações midiáticas, as expressões fundamentalismo e fundamentalismo islâmico, por exemplo, quase sempre aparecem em um mesmo contexto jornalístico. Nesse sentido, no Brasil há uma variante, também frequentemente utilizada: fundamentalismo evangélico.

O problema em questão é que essa utilização lança debaixo de um mesmo guarda-chuva conceitual uma série de grupos com características bastante peculiares e que nem sempre se assemelham àquilo que a palavra deveria significar. Ora, ou se utiliza a expressão para nomear grupos conservadores dados a práticas extremas ou apenas àqueles grupos meramente portadores de uma visão religiosa conservadora (ex.: literalista, inflexível, de exacerbado rigor comportamental, etc.).

Chamar meros conservadores de fundamentalistas implica, além de uma injustiça conceitual (posto que esses primeiros não se identificam com práticas violentas ou mesmo discursos de ódio), pode também resultar no recrudescimento desses grupos – meramente conservadores – em relação às possibilidades de diálogo com vertentes mais progressistas de grupos religiosos e sociedade em geral.

É inquestionável o recrudescimento de grupos conservadores mundo afora, e também no Brasil. Seja por meio da política institucional ou em enfrentamentos belicosos, alas religiosas retardam a ampliação de políticas públicas ligadas a Direitos Humanos.  No Brasil, a bancada evangélica apresenta-se cada vez mais disposta a emperrar qualquer política afirmativa em direção à comunidade LGBT. No oriente médio um grupo conservador extremista denominado Estado Islâmico subjuga cristãos, muçulmanos e outras etnias que não se submetam à sua interpretação do Corão, matando-os impiedosamente.

Entre tais exemplos, conquanto ambos sejam conservadores, aquele que se vale de discurso de ódio e violência pode, sim, ser denominado de extremista ou fundamentalista. Quanto aos políticos da bancada evangélica, entretanto, constituem apenas uma ala conservadora adepta de uma postura avessa à ideia de Estado Laico (embora na prática afirmem ser favoráveis a ele) ou já compõem relevante força fundamentalista no cenário político nacional?

Ao que parece, o bloco formado por esses parlamentares é bastante heterogêneo, sendo composto tanto por políticos de caráter religioso mais intransigente quanto por aqueles com menos rigor em seus preceitos religiosos. Exatamente por se tratar de um agrupamento político, formado por uma diversidade de denominações evangélicas, não constituindo uma agremiação religiosa stricto sensu, seria demasiado problemático taxá-los como fundamentalistas.

Para Berger (2012, p. 68), há dois tipos específicos de fundamentalismo:

Na primeira versão, os fundamentalistas tentam dominar toda uma sociedade e impor sua crença sobre ela; em outras palavras, eles querem transformar a crença fundamentalista na realidade não questionada para todos os membros dessa sociedade.Na segunda versão, o fundamentalismo abandona qualquer tentativa de impor uma crença a todos – a sociedade, em geral, pode ir toda para o inferno, por assim dizer -, mas tenta instituir o não questionamento da crença fundamentalista em uma comunidade muito menor.

Creio que aqui nos interessa mais a primeira versão, já que nossa atenção enfatiza a expressão pública ou política desse fenômeno.

Independentemente de quem venhamos a chamar de fundamentalista, isso implicará necessariamente em um meticuloso cuidado conceitual a fim de não cometamos injustiças. Nesse sentido, é importante também ressaltar que nem todo político evangélico faz parte da bancada evangélica – Marina Silva, por exemplo, nunca o fez. E mais: ainda que essa bancada seja vista como fundamentalista, certamente nem todo evangélico o será.

Uma breve proposta de conceituação do que seria uma postura fundamentalista, mais especificamente na dimensão política, de acordo com as demandas atuais, e levando-se em conta como essa categorização foi evoluindo, seria esta: a postura intransigente – de não-diálogo – diante de esferas da vida pública no que tange necessariamente a valores como democracia e Direitos Humanos. Em outras palavras, poder-se-ia entender como ethos fundamentalista aquele que, em nome da literalidade de um texto religioso e de um dogmatismo exacerbado, posiciona-se publicamente na defesa e imposição de seus valores (religiosos, morais, de classe, etc.) em detrimento de garantias sociais e direitos reservados a outros grupos e pessoas da sociedade. Nesse sentido, pode-se afirmar que todo fundamentalista é um conservador, porém nem todo conservador é um fundamentalista.

Por Alex Kiefer*

A pouco tempo dissertei sobre a questão dos direitos humanos e das suas relações com os aspectos religiosos, demonstrando a grande importância que as religiões possuem no que tange à promoção e salvaguarda da integridade física, mental e emocional do ser humano. Mas quando se trata de falar do indivíduo que desrespeita os valores religiosos do outro, alegando que a verdade de sua crença é superior e dominante, temos aí não só um ataque ao direito individual de liberdade de fé, mas a abertura a problemas mais complexos, como violência, discriminação, bulliyng e até conflitos armados. A este processo chamamos de fundamentalismo religioso.

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O fundamentalismo existe em praticamente todas as expressões religiosas da humanidade, mas não é um fenômeno causado pela instituição religiosa em si, mas sim pelo fiel. Ele está diretamente ligado a interpretação equivocada dos livros sagrados e das verdades da fé por parte dos indivíduos que praticam a religião, mais do que aos ensinamentos da própria religião. O fundamentalismo se encontra escrito na experiência do próprio fiel, que não consegue dialogar com outras formas de pensar, dentro ou fora do seu contexto religioso e, por isso, defende agressivamente sua verdade de fé cristalizada e imutável, fechada em sua própria auto interpretação doutrinária.

Atualmente, fala-se muito do fundamentalismo islâmico, mas não se pode esconder a existência de um fundamentalismo cristão, que se processa abertamente tanto no âmbito do catolicismo quanto do protestantismo, e tem sido muito observado no mundo, principalmente com o advento do protestantismo neopentecostal por toda a América.

O fundamentalismo cristão também surge da interpretação equivocada das próprias verdades da fé pelo indivíduo, que contesta e rejeita o que, segundo ele, não se encontra de acordo com o que acredita. De todo modo, não tem relação direta com o cisma ocorrido na Igreja Católica com a reforma protestante, uma vez que a união das igrejas cristãs em prol do diálogo é uma ação real e verdadeira.

Diariamente acompanhamos pela mídia as notícias de ataques a cultos religiosos por fundamentalistas cristãos. A sociedade brasileira tem sido impactada nos últimos anos por demonstrações de intolerância de grupos e ou indivíduos que, pretendendo-se superiores ou “mais abençoados e escolhidos por Deus”, provocam ataques a igrejas, centros espíritas e centros de umbanda e candomblé.

No Brasil, a triste realidade das relações conturbadas entre algumas igrejas e denominações religiosas dentro do próprio cristianismo tem exposto exemplos de intolerância que, na sua maioria, desrespeitam a própria natureza e elementos do culto. O caso mais famoso e que foi responsável por repercutir numa onda de intolerância se deu em 1995, quando o pastor da Igreja Universal do Reino de Deus, Sérgio Von Helde, chutou uma imagem de Nossa Senhora Aparecida durante um culto televisionado. Em janeiro de 2017, circulou pela mídia um vídeo no qual, durante uma cerimônia religiosa, na cidade de Botucatu (SP) uma pastora evangélica quebrou imagens religiosas de santos católicos, atitude esta que foi condenada por um Conselho de Pastores.

Um dos mais recentes, do final de 2017, mostrava um chefe do tráfico de drogas no Rio de Janeiro obrigando uma sacerdotisa da Umbanda a destruir as imagens e utensílios sagrados de seu próprio terreiro, alegando ser evangélico e usando o nome de Cristo para justificar o ato e punir a mulher.

Diariamente, fatos como estes chocam fiéis em todo o Brasil. Esta face destruidora do fundamentalismo religioso se processa tanto por parte dos cristãos que não aceitam as outras religiões como também daqueles que rejeitam a doutrina dentro do próprio cristianismo, por ignorância ou por terem pontos de vista discordantes.

Percebe-se que a questão doutrinal é ponto central na problemática do fundamentalismo cristão, principalmente no que tange à visão mais conservadora ou mais progressista que os adeptos têm de sua religião. Um exemplo disso vem a ser as formas de fundamentalismo encontradas em algumas correntes pentecostais e neopentecostais existentes dentro do catolicismo e do protestantismo. A não aceitação de algumas ideias ou práticas religiosas consideradas ofensivas à visão do fundamentalista são o motivo simples que dispara o confronto, que gera o ódio e a violência.

O neopentecostalismo, na visão de alguns fundamentalistas, deve se sustentar pela presença e atividade do Espírito Santo nas almas, que move ao encontro íntimo e pessoal com Jesus, mas extirpando-se formas exteriores de devoção que são consideradas por eles tradicionalistas e supersticiosas. Por isso, o fato de muitos cristãos católicos rejeitarem as concepções doutrinais da Nova Era e o diálogo inter-religioso que ela propõe, ou não aceitarem aspectos da religião popular cristã, que está muitas vezes imerso num universo mágico-religioso.

Nas igrejas evangélicas, principalmente nas neopentecostais, o ataque às formas exteriores de devoção popular está em primeiro lugar, combatendo o mal presente na veneração das imagens e nas formas de culto tradicionais das religiões africanas. Esta forma de rejeição e combate das tradições de matriz africana também se encaixa no aspecto do fundamentalismo cristão, uma vez que a presença de Jesus e muitos do ícones e preces católicas, como os santos e seus atributos, também se encontram nos cultos e doutrina da Umbanda.

O caráter segregador do fundamentalismo cristão não é muito diferente das outras formas de segregação religiosa que se observam em várias religiões do mundo, mas é totalmente incoerente com os ensinamentos de amor, perdão e libertação de Jesus de Nazaré. O importante aqui é salientar que o processo é demais complexo e, neste aspecto, se faz necessário um maior esclarecimento por parte dos líderes religiosos e das associações que congregam as igrejas cristãs, como o CONIC (Conselho Nacional das Igrejas Cristãs), que tem buscado uma maior unidade entre ambas, visando coibir os abusos e os erros doutrinais que alimentam o fundamentalismo. É uma tarefa árdua, porém possível.

*Alex Kiefer é doutorando em Ciências da Religião – PUC Minas.

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